Liberdade...



"...E eu que pensei que fosse o fim..."

Abri os olhos e por instinto levei meu braço para o lado esquerdo da cama, senti os lençóis vazios, o travesseiro frio e pude apenas suspirar. Estava difícil me acostumar a dormir sozinho de novo, mas era necessário. Ela não voltaria. Já estava cansado de lutar contra esse vazio e a falta que sentia dela. O mais difícil era aturar minha mãe falando que tinha perdido a mulher da minha vida por causa desse meu jeito super-romântico de ser. Sabe, algumas mulheres achariam isso algo bom! Só não encontrei uma dessas ainda. Colocava os pés no chão e precisava chutar as folhas de papel para os lados na busca pelo chinelo.



Folhas e mais folhas de músicas com o nome dela... Músicas jamais terminadas, músicas de dor de cotovelo e pequenas estrofes de superação em um momento raro em que eu me iludia de que conseguiria viver sem ela. Embaixo de uma dessas folhas estava um pedaço de uma de nossas fotos que eu rasguei durante um dos muitos acessos de raiva, exatamente o rosto dela, sorridente, como se fossemos durar para sempre. O nó me subiu a garganta junto com o gosto amargo da saudade, funguei, sequei os olhos com o dorso da mão e comecei a recolher todos os papeis caídos, pedaços de foto, restos de embalagem de comida. Chega. Estava cansado e queria mais do que nunca uma mudança em minha vida. 

Dessa vez não iria chegar até a porta e começar a catar os pedaços das fotos no lixo novamente. Coloquei a primeira calça que achei junto com a primeira camisa que minha mão alcançou. Desci as escadas do prédio correndo e me impulsionando para frente a cada passo, tinha medo de recuar e desistir, mas cheguei bem na hora. O caminhão do lixo virara a esquina e lá estavam os sacos pretos cheios com meu passado no chão. Esperei até que os homens vestidos de vermelho os jogassem na caçamba e os levassem embora, para longe do meu alcance. Me senti leve. Um calorzinho começava a brotar no meu peito. Eu não me contentaria com essa pequena chama, queria sentir uma fogueira inteira. 

Subi as escadas de dois em dois degraus, irrompi pelas portas até meu quarto e lá estava ele, escorado na parede, inocente e silencioso. Quantas noites não passei chorando sobre seu braço, dedilhando melodias lentas e murmurando letras tristes? Não queria mais sentir essa dor. Dei uma boa limpada, troquei as cordas, coloquei dentro da capa e quando me dei conta já estava contando as cédulas recebidas por sua venda. Andava de vagar pelo centro da cidade, cheio de pessoas indo e vindo, ainda pensava em qual seria meu próximo passo. Me deparei com uma loja de bicicletas e lembrei de um dos muitos momentos que me torturavam, a voz dela contendo um riso ao indagar como eu não sabia andar de bicicleta aos 25 anos. 

"Essas coisas não se explicam oras, simplesmente nunca aprendi". Entrei na loja decidido e saí dela com minha Caloi azul com detalhes verde limão totalmente montada. Sem dinheiro, mas feliz. Era a oportunidade perfeita para aprender. Olhei para o relógio no topo do prédio dos Correios, ainda eram 7h. Corri para atravessar o sinal fechado, atravessei a ponte, mais uma e lá estava eu no Marco Zero. Montei na bicicleta e podemos simplesmente pular a parte dos inúmeros tombos que tomei antes de conseguir me equilibrar e dar algumas voltas incertas. 

O vento no rosto, o sol da manhã, a sensação de liberdade. Queria arriscar mais e ir mais longe. Então lá estava eu, enfrentando o trânsito de volta pra casa. Podia ouvir as buzinas, sentir os buracos, acelerava e quanto mais rápido estava, mais o sorriso aumentava em meu rosto. As bancas de revista da Guararapes traziam as notícias: perca 4kg em 2 dias, Carminha fica Pobre, Comeram a Tiazinha. Em que isso influenciava a vida de alguém? Maneava a cabeça em negativo, estava cansado dessa vida de conformismo e futilidades. Seguia meu rumo, pedalando mais forte e mais rápido. 

Era isso o que eu queria. Um estalo me veio a mente, puxei o celular e tirei uma foto da ponte, com o Rio Capibaribe reluzente sob o sol. A cada bela paisagem uma nova foto. Todas publicadas em um blog. Histórias engraçadas, a melhor galinha guisada da cidade e a pior, as lojas mais baratas, as pessoas espontâneas, o cinema no meio da rua de um bairro pobre com filmes feitos pelos moradores, os artesãos, os pontos turísticos, onde existe ciclofaixas na cidade, no estado, no país, no mundo. E assim seguiu minha vida e meu novo trabalho, mostrar o mundo às pessoas.

Agora estava sentado na beira de uma cama luxuosa em um hotel na Cidade Luz, era Natal e estava nevando. Andava de um lado pro outro um tanto impaciente, testando combinações de gravatas, ternos, jaquetas e por fim lá estava eu usando jeans e uma camisa dos Ramones por baixo de uma jaqueta de couro. Eu podia estar em qualquer lugar, mas jamais deixaria de ser eu mesmo e isso pra mim era o mais importante. Os minutos passavam e continuava aguardando a minha vez de dar entrevista em como decidi simplesmente sair pedalando, conhecendo e mostrando o mundo pela câmera de um celular. 

Meu blog de viagem era um sucesso e meu livro líder em vendas. Ouvia o som do meu celular informando que uma sms chegara, pra variar minha mãe, que finalmente aprendera a enviar sms e não podia deixar seu instinto materno ao me mandar tomar café da manhã e me agasalhar antes de sair. “Mainha, tô bem”, enviei para ela, na esperança de tranquiliza-la, mas dessa vez era verdade, agora eu estava bem. Realmente bem, livre da minha dor e feliz. Agora eu entendo a metáfora de que um ponta pé de vez em quando é bom, pois te empurra pra frente. Decidi que essa seria a frase de abertura da minha entrevista. Hoje só tenho a agradecer àquele rosto sorridente que me deixou.


Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Liberdade- foi escrita inspirada na música Veja Só do Tibério Azul.

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