Platônico...


"...De olhar vendido te vendo... "

Lá estava ela novamente. Todos os dias, na mesma hora. Lá estava ela, linda como sempre. Quanto a mim, conseguia apenas passar em frente a sua janela da forma mais lenta possível, para absorver ao máximo sua imagem, a forma que seus longos cachos castanhos lhe caíam sobre os ombros ou como ela os domara com uma fita combinando com a roupa. A blusa que lhe marcava o decote ou as mangas recatadas. E eu não me importava com nada disso. A melhor parte de tudo o que via, eram seus lábios e como sempre estavam adornando um sorriso. Não apenas um sorriso, o sorriso mais lindo de todos, como se apenas ele pudesse devolver a alegria do universo. Talvez isso fosse um exagero do meu coração apaixonado, mas de que importava? Era um devaneio que eu guardaria para sempre comigo.


Um segredo que jamais será repetido em voz alta, por quê? Por que seu coração já tem um dono. Às vezes eu tinha a infelicidade de vê-lo chegar sorrateiro por trás dela e lhe tapar os olhos. Doía-me o coração ao ver os sorrisos da minha morena, sendo causados por outro. Minha morena... Minha morena... Desde quando posso classificá-la dessa forma? Talvez apenas na minha mente, onde também residem os devaneios de que seria eu no lugar dele, que seria eu a lhe tocaria o rosto daquela forma suave, lhe abraçaria e sentiria o cheiro dos seus cabelos, me perderia ao sentir a pele suave de sua nuca, seu rosto e por fim seus lábios. No fim tudo não passa de devaneios e sonhos de um amor platônico.

Longos são os suspiros e os sonhos e curtos os momentos junto a ela. Outra manhã e lá estava eu, abrindo a porta da loja e ao menor som do outro lado da rua, como um bobo virava não só o rosto, mas o corpo inteiro. A visão que deveria ser gratificante tornou-se um tormento ao ver lágrimas perderem-se em seus lábios descoloridos. Por um momento senti sua dor e sem pensar, meus passos levaram uma das flores do jardim ao alcance das minhas mãos e em seguida até a frente da sua janela. O gesto simples conseguiu pelo menos lhe tirar um breve sorriso antes que ela entrasse e me privasse de sua imagem. Não demorou para as fofoqueiras do bairro entrarem na loja e começarem a falar sobre a briga da noite e como o meu rival no amor tinha ido embora com uma ninfeta. Ninfeta. Impossível não rir com a palavra que usaram para chamar a filha do dono do mercado.

Uma parte de mim sentia-se culpada pela outra que estava ligeiramente contente com a informação. Nos dias seguintes arriscava um sorriso, um aceno, outra flor. Ganhei alguns sorrisos em troca. Nas semanas seguintes eu ganhei sorrisos e conversas, descobri por acidente seu aniversário e sem jeito te dei aquele vestido que por tanto tempo você admirou na vitrine. A visão da manhã seguinte me deixou com a boca aberta por vários segundos e só fui perceber quando o toque de sua mão sob meu queixo o colocou no lugar. Aquele rápido toque dos seus lábios sobre os meus, uma forma de agradecimento você disse, mas para mim, eu que estava sendo presenteado. Foi com satisfação que notei o brilho voltar aos olhos dela e o sorriso da minha morena finalmente me pertencendo.




Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Platônico- foi escrita inspirada na música Vendo à Vista do Alexandre Nero.

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