Silenciando...
"...Nunca mais plateia no Municipal..."
O som dos saltos
sobre os paralelepípedos da rua era a companhia da noite. De vez em
quando um cachorro latia em algum lugar como se lhes fizesse
companhia. Os passos tortos surpreendiam pelo equilíbrio ou, por
vezes, a falta dele, mas andar na ponta dos pés nunca foi um
problema. Saíra da festa antes do horário, madrugada a dentro, sem
destino. Na mão ainda carregava uma garrafa de gin, a boca marcada
pelo seu batom vermelho. Mais um gole e dava-se conta do fim do
precioso líquido, com raiva jogava a garrafa contra a primeira
parede que conseguia encontrar na penumbra, quase caíra com o
impulso dado, mas retomara a compostura e seguia seu caminho.
Música! Conseguia
ouvir música e risos ao longe. Uma festa? Será que conseguia
entrar. Passava as mãos pelos cabelos volumosos, puxava os seios
fartos pra cima e acertava os cantos do batom e em meio a esse gesto
olhava através da janela. Era um pub a moda antiga, bancos altos na
frente do balcão, iluminação amarelada e no palco algumas meninas
mostravam seus talentos erguendo e abaixando as pernas em um cancã
sincronizado. Podia ver nos olhos das meninas que passavam servindo
as mesas.
Conseguia reconhecer
em algumas o olhar que um dia já possuiu, o brilho do sonho de
encontrar um grande amor que a tiraria daquela vida, que a daria uma
vida de verdade. No palco ela conseguia ver ela mesma, o Municipal
lotado, sua precisão e graça sendo aplaudida de pé no fim do
espetáculo. Lembranças distantes de uma vida que abandonara em
busca de outra e outra e outra… E olha só onde estava agora.
Chorando na frente de uma janela empoeirada. Com pesar virava de
costas e seguia rumo a avenida principal. Poucos carros naquele
horário, alguns bêbados, algumas moças a procura de dinheiro. Nada
fora do normal.
Estava a algumas
quadras de casa quando aceitou a derrota e tirou os saltos. A
meia-calça já desfiada agora também começava a ficar suja. Da
pequena bolsa retirava as chaves da portaria, subia da forma mais
silenciosa possível as escadas que pareciam gemer a cada passo que
dava. Cinco lances de escada, cinco andares que lhe deram a chance de
pensar no que faria dali por diante. Não poderia continuar assim,
não aguentava mais continuar assim.
Aceitou o fim ao
chegar a frente da porta, girou a chave, entrou com toda calma do
mundo. Fechou a porta, trancou, colocou as chaves penduradas em seu
local ao lado da porta, largou os sapatos, respirou fundo e foi até
a cozinha. Abriu os armários até encontrar a garrafa que procurava.
Sentou no sofá e chorou como nunca, chorou como uma criança que
perdeu o seu brinquedo favorito. Deu vários goles na garrafa, o
líquido amargo descia goela abaixo e queimava mais do que qualquer
bebida alcoólica que já provara.
Bastaram apenas mais
alguns minutos e outros goles para que ela por fim deitasse e então
silenciasse.
Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Silenciando- foi escrita inspirada na música A Bailarina Torta da banda A Banda Mais Bonita da Cidade.
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