Seu...
"Eu tava só, sozinho..."
Eu sempre fui do tipo sozinho. Nunca tive muitos amigos e nem se quer conhecidos. Os vizinhos me chamam de “aquele cara de cabelo comprido da casa verde” e não precisavam saber de mais nada sobre mim. Muito menos que fui abandonado e por isso estava agora nessa cidade de merda, com um emprego medíocre e sozinho. Sem parentes ou amigos para me aturar enquanto choro minhas pitangas.
O que eu tinha mais próximo do que chamam de amigo era o Carlos, paulista perdido nos confins do nordeste, sozinho, mau humorado e anti social como eu. Às vezes saíamos para beber. Eram dias bons, sentávamos no bar, pedíamos uma cerveja cada e ficávamos soltando fumaça e dando goles na boca da garrafa enquanto olhávamos a rua, as pessoas que passavam, expressões e roupas estranhas. Assim íamos noite a dentro, as vezes até amanhecer. Conversar? Para que?
Show da minha banda favorita? Não fui. Desfile de gostosas de lingerie na TV? Mudei de canal. Apresentação de um circo famoso lá? Lembrei de você e desliguei a TV. Nada me interessava nem chamava atenção e quando percebi, já era noite, a sala estava escura e o meu estômago roncando. Fui até a cozinha arrastando os chinelos e lembro de você reclamando disso. Ligo a cafeteira e lembro de você reclamando do café requentado. Pego um copo e lembro de você reclamando por não usar xícaras. E mesmo com tanta reclamação, eu sentia sua falta.
A noite chegou e foi embora sem que eu desse a mínima para ela, o mesmo aconteceu com o dia seguinte e o próximo e o próximo. Passava na frente da porta com um sanduíche a meio caminho da boca quando notei toda a correspondência acumulada no tapete. Querendo ou não precisava conferir isso, afinal, se não pagasse a luz ou o gás teria sérios problemas para pedir e requentar a pizza. Comecei a separar as correspondências nas pilhas de sempre. Lixo, lixo, vale a pena olhar, lixo, conta, vale a pena, lixo, lixo, conta, conta, conta. Um sobressalto e senti como se o mundo tivesse parado por um breve segundo.
Nem precisei pensar muito para saber quem em sã consciência ainda enviava telegramas. Não me interessava onde você estava dessa vez, Aracajú, Alabama, Japão. Seja lá o lugar em que estivesse, não era ao meu lado. Fui dormir com as suas palavras, que apesar de escritas, eu conseguia ouvir claramente naquela sua voz doce e suave cheia de sotaques dos lugares por onde passava “volto logo”. Fui dormir na cama, como não fazia a semanas e tenho certeza de que peguei no sono sorrindo e foi assim que acordei.
Saltei da cama assim que vi a claridade por entre as cortinas, tomei um banho e assoviava enquanto fechava o portão. Dava um pequeno salto para descer a calçada e caminhava com as mãos no bolso. Dava bom dia a todos que encontrava e me divertia com seu espanto. Passava na frente da delegacia e arrancava algumas pequenas flores do canteiro, acabei esbarrando no delegado e lhe estendi as flores, quase levei uma sova e fiz uma nota mental pra te contar isso depois. Nem esperei pela continuação das reclamações dele e desci a rua até a padaria.
Aquele cheirinho de pão fresco me fez salivar. Com todos os dentes a mostra desejei um bom dia, recebi os pães da mão enfarinhada do seu Manoel. “O amor é lindo seu Manoel” murmurei enquanto lhe pegava as mãos e depositava um beijo “E a vida é bela” continuei falando enquanto ia até o caixa, deixando o troco na caixinha de natal para a alegria da atendente. Comi, arrumei a casa, tomei outro banho. Durante os dias seguintes eu fiz compras, reabasteci a casa, lavei os lençóis e finalmente ouvi o anúncio. Te veria esta noite.
Coloquei a camisa de flanela que ficava linda em você depois de uma noite ao seu lado, já com óbvias más intenções. Uma calça preta, tênis e quando notei estava sentado ao lado de várias pessoas esperando. E esperei pacientemente até ver o holofote aceso no picadeiro e o mestre de cerimônias fazer a introdução, vi leões, cachorros, palhaços e finalmente você. Acompanhei deslumbrado você descer lentamente pelo longo tecido, enroscar-se e descer quase em queda livre, sorrir e acenar.
Senti seu olhar sobre o meu, fiz um aceno com a cabeça e te esperei na saída. Não consigo imaginar como cabe tanta alegria em um só peito, quando abri os olhos e te vi sobre meu corpo usando a minha camisa. E foi assim todas as noites até que você foi embora novamente. Não te pedi para ficar como implorei da outra vez. Sabia que você era assim, gostava de ser livre, mas no fim sempre volta para mim.
Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Seu- foi escrita inspirada na música Telegrama interpretada por Zeca Baleiro.
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